quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Por dentro de cada coisa

          Recebi da Camila, ao final do ano passado (2012) este belo poema em prosa de José Jorge Letria, poeta e escritor português... No corre-corre das atribulações de fechamento de semestre, somente uma passada rápida d'olhos e... gaveta! Agora, apaziguada pelas tarefas cumpridas, oxigenada e descansada pelas merecidas férias gozadas, cumpre-me uma leitura aprofundada, redescoberta de um tesouro, evocação de memórias de infância...
          Obrigada, Camila! Compartilho agora a beleza dessa relíquia com meus sensíveis seguidores.
Vanda Felix


POR DENTRO DE CADA COISA 
 José Jorge Letria

Dentro de uma caixa havia outra caixa e dentro dessa caixa uma outra ainda. E começando assim nunca esta história finda.
Dentro da terceira caixa havia o casulo de um segredo e dentro e dentro desse casulo um menino com medo, que dormia mal e acordava cedo.
Dentro do seu medo havia um gato persa que com as borboletas metia conversa e dentro da conversa havia sempre uma pergunta com a resposta junta e também a curiosidade de quem nunca se perde quando busca a felicidade.
Nas mãos do menino havia um cofre pequenino e dentro dele uma pedra preciosa, de brilho discreto e imitando a forma de uma rosa, em verso ou em prosa.
À volta da pedra preciosa havia uma luz intensa e misteriosa que vinha não se sabe de onde mas que fazia lembrar a das estrelas que nós vemos na moldura noturna das janelas.
Por trás das janelas havia uma menina a espreitar e atrás dela uma fada que lhe enfeitava os cabelos com os fios prateados do luar.
Dentro do luar havia uma música tão doce, que, ao ouví-la, o sono chegava mais depressa fosse de onde fosse.
Dentro do sono havia um barquinho a navegar, rumando às ilhas que só existem no mapa inventado desse mar.Dentro do barquinho havia peixes a saltar e cada um deles tinha na boca um segredo, para revelar desde que o deixassem ficar livre para poder voltar ao mar.
Dentro do mar havia uma estrela a brilhar e um cavalo-marinho entre as algas e as conchas a saltar.
Sobre o dorso do cavalo-marinho havia uma princesa tão bela que o brilho do seu olhar fazia inveja a qualquer estrela.
Nos lábios da estrela que são da cor do céu, havia uma palavra rara e dentro dessa palavra uma sílaba de vento  que põe as casas e os sonhos ao abrigo do esquecimento.
Dentro da minha gaveta havia um livro aberto e nesse livro aberto uma linha sublinhada e no meio dessa linha o teu nome escrito com uma tinta iluminada.
Dentro da minha boca estava o teu nome guardado e dentro do teu nome todos os sabores que não há em qualquer outro lugar.
Dentro de uma concha estava uma pérola e dentro dessa pérola uma centelha de lua, que sendo fugaz e esquiva, chegava e sobrava para nos iluminar a rua.
Dentro da noite havia um cavalo a relinchar e no seu relincho estava a queixa antiga de quem passou a vida a trabalhar.
Dentro da tua mão estava a minha mão pousada, como uma asa cansada a adiar o voo lá mais para a alvorada.
Dentro da minha voz estava a tua voz escondida, murmurando os segredos que guardamos toda a vida.
Dentro de um livro estava uma biblioteca e dentro da biblioteca estava o mundo inteiro, como se fosse um poema só esquecido dentro de um tinteiro.
Dentro de um farol estava a luz cativa, tentando vir cá de fora para mostrar aos barcos que estava alegre e viva e dentro dessa luz estava o teu retrato, sentada na varanda a afagar um gato. Nas patas do gato estava um novelo e dentro do novelo estava o fio da história que se desfiou da minha memória.
Dentro desta casa havia uma cave e dentro da cave um rumor antigo e nesse rumor o eco de uma voz que bem podia ser a dos meus avós.
Dentro de um poeta havia outros poetas e dentro de cada poeta tantos livros por escrever que nem uma vida inteira chegava para os ler.
Dentro do armário estava uma caixa de chapéus e dentro dessa caixa um molho de cartas antigas, que a minha mãe  recebeu das suas amigas.
Dentro do fogão estava uma serpentina de fumo que saltou para fora e subiu sem rumo e dentro desse fumo havia um rei perdido, que morreu numa batalha que julgava ter vencido.
Dentro da escrivaninha havia um diário e dentro do diário a história de uma vida e dentro dessa história muita coisa triste que ficou esquecida.
Dentro do meu bolso estava uma carteira e dentro da carteira uma moeda antiga que  alguém me deu na festa da espiga.
Dentro da gaiola estava um pássaro triste e dentro do seu canto uma promessa de fuga e nessa promessa o meu sonho antigo de um dia poder fugir contigo.
Dentro de uma folha havia uma lágrima de seiva e dentro dessa lágrima o segredo vegetal de um jardim inventado num esquecido canto do meu velho quintal.
Dentro do meu nome guardava o teu nome e dentro desse nome o eco dos outros nomes, tão iguais e tão diferentes, que lançados ao vento se transformaram em sementes.
Dentro desse quarto havia uma porta e atrás da porta uma sombra escondida e atrás da sombra uma outra sombra a lembrar os que um dia se foram desta vida.
Dentro de uma pasta havia um caderno e nesse caderno havia um poema e nesse poema é que estava a chave da infância guardada no canto de uma cave.
Dentro de um poço estava a água fresca e à tona da água a tua imagem leve a guiar a mão de quem a descreve.
Dentro de uma ilha havia uma caverna e dentro da caverna a arca de um tesouro e dentro dessa arca o choro de um pirata que um dia descobriu que a prata era só lata.
Dentro do meu peito estava um rouxinol e dentro do seu canto estava um raio de sol e dentro desse raio estava o universo a tentar caber na exatidão de um verso.
Dentro de uma caixa estava outra caixa e dentro dessa caixa outra caixa ainda e dentro desta caixa estava um anel, a tela de um pintor e a magia de um pincel.
Dentro de um canteiro estava um duende  e nas mãos do duende um segredo antigo que se desfaz em vento sempre que eu digo.
Dentro da mão do pai cabe a mão do filho e na mão do filho cabe a pedra branca que guardou da areia todos os mistérios que lhe contou a lua cheia.
Dentro de um búzio estava o mar inteiro e dentro desse mar a história do mundo,  mas só a aprendia quem chegasse mesmo ao fundo.
Dentro de uma rede estava um peixe azul, verde e amarelo como os que há no sul e dentro desse peixe estava um diamante perdido por um náufrago que foi navegador errante.
Dentro do eu digo está tudo o que sei  e dentro do que sei está tudo o que esqueço e dentro do que esqueço está guardado o verso com que um dia destes tudo recomeço.
Dentro do azul está uma promessa de que nunca acaba esta conversa e dentro da  conversa está a voz que diz que há sempre uma caixa dentro, algures num país, que guarda o segredo que nos fará feliz.


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